segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Desejo [Hora de Delírio] - Junqueira Freire


"Inferno" Anônimo
c.1520, óleo sobre madeira
119 x 217,5 cm
Museu Nacional de Arte Antiga
Lisboa Portugal


-----------------------


"Desejo"
Junqueira Freire in Contradições Poéticas

[Hora de delírio]


Se além dos mundos esse inferno existe,
Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
As inefáveis dores;

Se ali se sente o que jamais na vida
O desespero inspira:
Se o suplício maior que a mente finge,
A mente ai respira;

Se é de compacta, de infinita brasa
O solo que pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
Tudo que ali se visa;

Se ali se goza um gênero inaudito
De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
Na vida não possíveis;

Se é verdade esse quadro que imaginam
As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
Não são erros vãos;

Eu – que tenho provado neste mundo
As sensações possíveis;
Que tenho ido da afecção mais terna
Às penas mais incríveis;

Eu – que tenho pisado o colo altivo
De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
Surgido vencedor;

Eu – que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno;
Eu quero morrer pra sempre,
Entrar por fim o inferno!

Eu quero ver se encontro ali no abismo
Um tormento invencível:
– Desses que achá-los na existência toda
Jamais será possível!

Eu quero ver se encontro alguns suplícios
Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
– “Chora por fim, – que és homem!”

Que de arrostar as dores desta vida
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo:
Quero vencer o inferno!


----------------------

A descrença envolta neste poema expressa o nível complexo de uma alma aturdida por ilusões e dúvidas. Privando-se do bem estar pós-mortem a dúvida o faz desafiar o Inferno feito de crenças e tantas vezes impostas ao seu corpo e sua alma. Tentando libertar a si, procurava a morte. O inferno não estava mais em um lugar, habitava dentro de si próprio.

Seus poemas estão carregados de culpa revelando uma sexualidade latente e reprimida. Retratam o jovem angustiado e depressivo que se sente incapaz de seguir a vida religiosa e que encontra na morte o seu único escape. 

Junqueira Freire é um poeta de contradições: "estranha figura do monge-poeta, que oscilava entre o Cristo e Voltaire" (Eugênio Gomes), misturando preces e blasfêmias, religiosidade e satanismo, tendências  conservadoras e revolucionárias, clássicas e românticas, razão e sentimentalismo.

3 comentários:

Anônimo disse...

" O inferno não estava mais em um lugar, habitava dentro de si próprio."

Hoje eu lia Drummond.....


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.



[...]

Carlos Drummond de Andrade

.....as vezes doi.

1 beijo

Hecatus disse...

"Sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem... sem que ele estale".

Falando em corações tumultuados...

"Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente." – A. Azevedo.

– Dói sim, dói muito.

Anônimo disse...

clarão
pequeno - meu horizonte - tão limitado
- (uma fresta)
mas nele cabe - (imenso) - o mesmo sol
- que aquece
e tinge - (de vermelho) - a terra inteira
(nydia bonetti)

...e um dia inedito se descortina a cada manhã.
B**