segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sempre Ella! - Gonçalves Dias.




Gonçalves Dias

SEMPRE ELLA!
Segundos Cantos; Dias, Gonçalves. 1848.

Per noctem quæsivi, quam
deligit anima mea, et non
inveni illam
CANT. CANT.


Eu amo a doce virgem pensativa,
Em cujas faces pallidez se pinta,
Como nos céos a matutina estrella :
A dor lhe ha desbotado a côr do rosto,
E o sorriso que lhe roça os lábios
Murcha ledo sorrir nos lábios d’outrem.

Tem um timbre de voz que n’alma echôa,
Tem expressões d'angelica doçura,
E a mente do que as ouve, se perfuma
De amor ardente e de piedade sancta,
E exala effluvios d'um odor suave
De aloes, de myrrha ou de mais grato incenso.

E nessas horas, quando amente afflicta,
De dor occulta remordida, anceia
Desabrochar-se em confidencia amiga,
« Neste mundo o que sou? — triste clamava;
« Persica involta em pó, entre ruínas,
« Erma e sosinha a resolver-me em pranto!

« Flor desbotada em hastea ja roída,
« De cujo tronco as outras amarellas
« Ja rójão sobre o pó, ja murchas pendem!
« E' sentir e soffrer a minha vida! »
Merencoria disia, erguendo os olhos
Aos ceos d'um claro azul que lhes sorrião!

Náda o mudo alcyon por sobre os mares,
E proximo a seo fim desata o canto ;
A rosa do Saarão la se despenha
Nas agoas do Jordão : e como a rosa,
Como o cysne do mar entre perfumes,
Aos sons d'uma Harpa interna ella morria!

E como o pastor que avista a linda rosa
Nas agoas da corrente, e como o nauta
Que vê, que escuta o cysne ir-se embalado,
Sobre as agoas do mar cantando a morte;
Eu tambem a segui — a rosa, o cysne
Que lá se foi sumir por clima extranho.

E depois que meos olhos a perderão,
Como se perde a estrella em céos infindos,
Errei por sobre as ondas do oceano,
Sentei-me a sombra das florestas virgens,
Procurando apagar a imagem della,
Que tão inteira me ficára n'alma!

Embalde aos céos erguendo os olhos turvos
Meo astro procurei entre os mais astros,
Q'outr'ora amiga sina me fadára!
Com brilho embaciado e luz incerta
Nos ares se perdeo antes do occaso,
Deixando-me sem norte em mar d'angustias.

sábado, 10 de setembro de 2011

Marília de Dirceu: Parte I - Lira XIV, Tomás Antônio Gonzaga

Marília de Dirceu: Parte I - Lira XIV, Tomás Antônio Gonzaga


Apolo e as Ninfas, de François Girardon (1666-73), na Gruta de Apolo, em Versalhes


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Minha bela Marília, tudo passa;
A sorte deste mundo é mal segura;
Se vem depois dos males a ventura,
Vem depois dos prazeres a desgraça.
Estão os mesmos Deuses
Sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
Já foi Pastor de gado.

A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos
Ferro do torto arado.

Ah! enquanto os Destinos impiedosos
Não voltam contra nós a face irada,
Façamos, sim façamos, doce amada,
Os nossos breves dias mais ditosos.
Um coração, que frouxo
A grata posse de seu bem difere,
A si, Marília, a si próprio rouba,
E a si próprio fere.

Ornemos nossas testas com as flores.
E façamos de feno um brando leito,
Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
Gozemos do prazer de sãos Amores.
Sobre as nossas cabeças,
Sem que o possam deter, o tempo corre;
E para nós o tempo, que se passa,
Também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,
E se entorpece o corpo já cansado;
Triste o velho cordeiro está deitado,
E o leve filho sempre alegre salta.
A mesma formosura
É dote, que só goza a mocidade:
Rugam-se as faces, o cabelo alveja,
Mal chega a longa idade.

Que havemos de esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
E pode enfim mudar-se a nossa estrela.
Ah! não, minha Marília,
Aproveite-se o tempo, antes que faça
O estrago de roubar ao corpo as forças
E ao semblante a graça.

Vocabulário
Ventura: felicidade.
Ímpio fado: impiedoso destino.
Apolo: Deus grego.
Campa: sepulcro, túmulo.
Ditosos: felizes.
Difere: adia.
Laço: abraço.
Sãos: honestos.
Leve: brincalhão.
Dote: bem, prêmio.
Alveja: embranquece.
Estrela: destino.
Graça: beleza.

Apolo e dafne - Bernini (1622-25)
Daphne by Kate MacDowell











O maior de nossos arcádicos, Tomás Antônio Gonzaga, por ser simultaneamente o autor de Marília de Dirceu e das Cartas Chilenas, já desvenda, pela inquietação latente de seu lirismo, pelos versos repassados de ternura e emoção amorosa, pelas estâncias bucólicas de acentuado cunho realista, ser não apenas o maior vulto do setecentismo brasileiro, mas também admirável expressão antecipada do nosso romantismo (pré-romantismo presente em suas obras, seja pela ideia do tempo fluindo, seja pelo passadismo ou saudosismo, ou, até mesmo, pelo que norteia toda a confecção de Marília de Dirceu: a declaração do amor constante, em qualquer circunstância).

Esta é uma das mais significativas liras de Gonzaga: além de ser umaapologia da mocidade, é também um alerta quanto ao passar do tempo (tema já bastante explorado pela estética barroca). Observe também que os versos são decassílabos (dez sílabas), com exceção do quinto e oitavo de cada estrofe (heróicos quebradosou hexassílabos – seis sílabas). As rimas são opostas (ABBA) e alternadas (CDED). O poeta evita, nos versos longos, rimas agudas, equilibrando com os decassílabos sons agudos de versos heróicos quebrados obtendo, assim, com sílabas graves e agudas extraordinário grau e poder de precisão métrica dificilmente repetidos, o que conduz à beleza da linha melódica e uma imagísticado melhor quilate poético.

O poema desenvolve o tema do carpe diemcolher o dia, ou seja, aproveitar o dia presente. Trata-se de uma expressão latina, proveniente da Ode XI, do livro I das Odes de Horácio. O sentido é de que devemos aproveitar as ocasiões quando elas se apresentam. O ser humano não deve se inquietar com o amanhã, cujo saber pertence aos deuses. Enquanto nos preocupamos com o que não nos cabe saber, o tempo foge. Devemos, portanto, saber reconhecer quais as ocasiões favoráveis para aproveitá-las. Logo, a vida é breve e devemos gozar dela sem desperdiçar o tempo.

Na 1ª estrofe, o eu lírico assinala a inconstância das coisas (os prazeres da vida vêm, sempre seguidos da desventura), pois o destino humano é incerto (´´A sorte deste mundo é mal segura``). Ressalta que os próprios deuses estão sujeitos ao ´´ímpio Fado`` (impiedoso destino). Curiosamente, o tema da estrofe é a inconstância da sorte. É como se o encurtamento do verso, alternado com o verso mais longo, imitasse os altos e baixos do destino.

A referência ao deus grego Apolo (exilado no país de Admeto, rei da Tessália, onde pastoreou os rebanhos e dirigiu os pastores) é típica do Arcadismo, escola que pretendia uma espécie de retorno ao tempo mitológico da Grécia clássica. Em uma das muitas versões míticas, Apolo foi destituído por Zeus de seus poderes, virtudes e atributos, passando assim, de uma total soberania e esplendor, para a condição de servo de reis e pastor de rebanhos.

Para o Arcadismo, a vida do pastor, singela e próxima da natureza, é bela e pura. No entanto os versos ´´Apolo já fugiu do céu brilhante / já foi pastor de gado`` criam uma imagem dentro da qual estar no céu é o polo positivo (felicidade) e ser pastor é o polo negativo (degradação). Portanto, a imagem contida nos versos é surpreendente quando percebemos que ela subverte o tema árcade da vida pastoril como ideal a ser buscado (locus amoenus). Dentre as inúmeras características árcades presentes no poema, destacam-se: a valorização da mitologia e do paganismo.

Na 2ª estrofe, o poeta tece considerações sobre a Morte: a morte tudo destrói; mesmo na ´´triste campa``, o homem está sujeito à inconstante sorte. Observe a personificação e a tonalidade quase surreal da combinação devorante mão.

Nas duas primeiras estrofes, são feitas duas colocações de que decorrem os outros versos.

Na 3ªestrofe, ´´Destinos impiedosos`` retoma ´´ímpio Fado``. Ora, assim como os deuses estão sujeitos ao ´´ímpio Fado``, os homens estão ao ´´Destino impiedoso``. E, uma vez que ´´A sorte deste mundo é mal segura``, a única atitude perante a própria vida é aceitar o convite amoroso, tornando os breves dias mais felizes(“façamos sim, façamos, doce amada, / os nossos breves dias mais ditosos”).

Na 4ª estrofe, o eu lírico enfatiza o ideal de felicidade campestre e a presença de elementos que remetem a um ambiente pastoril .A presença do bucolismo, da valorização da vida simples está expressa em trechos, como em ´´Ornemos nossas testas com as flores; / E façamos de feno um brando leito (...)``. Surge a visão epicurista ( sensual) da vida (´´Gozemos do prazer de sãos Amores``) .

A valorização do ´´carpe diem`` devido à consciência da fugacidade do tempo está presente na 5ª estrofe (premissa dos versos iniciais). O fluir do tempo deixa marcas, em seu caminho. O corpo perde a sensibilidade (´´E se entorpece o corpo já cansado``) O poeta compara duas etapas da vida, mocidade e velhice utilizando, em certo momento, exemplos da própria natureza (´´Triste o velho cordeiro está deitado / E o leve filho sempre alegre salta``).

O homem está sujeito à morte, destino impiedoso, fluir do tempo, velhice. Surge um questionamento na 6ª estrofe: ´´Que havemos de esperar, Marília bela?`` A observação das constantes mudanças do mundo (carregadas de uma conotação negativa, de degenerescência) faz com que o eu lírico conclua ser necessário aproveitar o momento valorizado pela juventude (´´Aproveite o tempo, antes que o faça``), a vida presente (filosofia do carpe diem), antes que a velhice roube ´´ ao corpo as forças e ao semblante a graça``.

O sensualismo velado de Marília de Dirceu, a transmitir sempre fidelidade diante do amor e da vida, não parece desaparecido com os amargores da Inconfidência, o exílio africano e o casamento distante. O mito Marília, doce e meiga, a noiva ideal que todos os homens anseiam, continuará vivo porque permanente símbolo de beleza, de um amor interrompido no tempo, e portanto eterno. Viverá enquanto existir o semblante e graça de uma adolescente que a lira de um grande poeta eternizou em seu infortúnio, a comover em todos os séculos gerações de língua portuguesa.



Fontes:
- Literatura & Linguagens, Nelson Cardoso (http://nelsonsouzza.blogspot.com)